domingo, 31 de outubro de 2010

A gente se acostuma.

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Extraído do livro “Eu sei, mas não devia“, de Marina Colasanti

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Podes cair, avião!

Sabes, minha vida tem sido um excesso permanente, uma espécie de avalanche a escorregar montanha abaixo. Não tem havido pecado que não me manche, vício que não me seduza. Tenho 36 anos agora e, às vezes (eu, que tenho terror de aviões), dou comigo, a bordo de um avião, quando aquela improvável invenção de metal começa a abanar como se tivesse acabado de descobrir a lei da gravidade, a pensar friamente: “Se esta merda cair agora, como é lógico que aconteça, é justo que assim seja: já vivi de mais, três vidas numa só, trezentos e sessenta anos em trinta e seis. Podes cair, avião: juro que não me vou queixar de ti”.
“No teu deserto"

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Terceira a esquerda

Terceira à esquerda. Segunda à direita. Segue em frente. Passa pelo orelhão. Quando vir um sorriso à sua direita, você dobra. Quatro quarteirões. Olha pra cima. Se tiver uma nuvem, você espera ela passar. Se não tiver, entra depressa. Uma porta branca. Estreita, tem de se esforçar um pouco. Aí, só subir a escada. Mil, novecentos e vinte e sete degraus. Aí, chega no trampolim. Abra os braços, pra se equilibrar bem, que um tombo agora pode ser fatal! Lá embaixo, uma piscina. Vermelha. Vermelha porquê? Ué, porque sim, ora! A água é quentinha, vai gostar. Mais divertido se pular de cabeça. Respira fundo antes, que leva um tempo pra voltar à tona. Mas volta. Aí, umas braçadas. É preciso fôlego... Vai nadar aí por um bom tempo. Mas é gostoso, a água quentinha não deixa ficar dolorido. Não, não tem fundo, não dá pra descansar. Faz o seguinte: de vez em quando você bóia. Põe a barriga pra cima e bóia. Igual criança. Se o céu estiver escuro, pode ir se preparando. Vai precisar de força. Mas passa. Não dá pra se afogar, só assusta um pouco. Continua nadando. Só duas possibilidades de chegada: abismo ou praia. Se chegar na praia, melhor. É um lugar bonito. Relaxante. Tomara que seja. Se for abismo, vai doer. Mas passa. Dependendo do peso da sua alma, você vai cair por alguns minutos. Talvez, algumas horas. Tem gente que cai por anos. Dizem por aí que tem gente que nunca mais pára de cair. Mas é lenda. É, não chega a ser perigoso, perigoso, assim... Mas assusta. Tá, é perigoso, sim. Mas e o que não é? Depois? Depois, sei lá... Você vai decidir. O que eu sei é que você vai ter vontade de começar tudo de novo. Vai, segue em frente. Sem medo. Bota um sorriso na cara e vai. Anda! Vai! Boa sorte. Qualquer coisa, liga. Beijo. Tchau.