domingo, 2 de junho de 2013

a vida com cara de intervalo, por Lidia Martins

Que saída é essa? – contornei consciente da cilada que me esperava.
Tem alguma coisa errada –  pensei. A placa dizia para cruzar a porta do umbral, não para adentrá-la.
Abri o mapa.
À minha frente, em um único plano, as estradas se retorciam como mandalas tecnicolormente cruéis de ilusões de ótica.
Pelas trombas nirvânicas de Ganesha – meditei. Dai-me visão, possibilidades, alguma inteligência e, sobretudo, uma dose extravagante de paciência – afastei supondo que teria sido vítima de algum ritual macabro de magia negra.
Balancei a cabeça com aquele gesto fúnebre de ciência médica que aprendi na infância quando diagnosticava o estado de saúde precário de minhas bonecas. Olhei em volta. Meus olhos varreram o chão como se esperassem encontrar alguma resposta na poeira que a brisa espalhava e nada. Era como estar dentro de um oásis infernal que aparecia de desaparecia quando bem entendia. Fiquei observando minhas pegadas sumirem por aqueles labirintos vivos, sentindo que meu corpo se distanciava da alma a cada passo que dava.
Abri o manual de instrução de Franz Kafka na esperança de que ele tivesse alguma sugestão para amenizar o horror que me esperava. A primeira lição: "O sentido da vida é que ela termina."Franzi o cenho com um semblante pessimista e repeti aquela frase até ficar convencida.
Som a som, a voz autoral extravasava para o fundo sem saber do seu próprio mergulho no mar turvo da imaginação. As vozes eram visões proféticas da consciência a bater o cajado sobre as águas escuras da emoção para que elas se levantassem e, quem sabe, impedir que os exércitos internos e externos se precipitassem para além de sua dimensão já que não era possível impedir que eles se enfrentassem. Ou não. A voz era o mapa da mente a exigir de seu descobridor a latência da busca, ao triunfo de finalmente encontrar o que se procura. Sorri à saúde daquele desapegado escritor tcheco, pensando com certa alegria que, inversamente, o sentido da morte é que ela ressuscita.
Coloquei o lápis em riste e cocei a ponta do nariz. Era preciso refazer a rota. E onde depositar a fé do encontro senão no caminho de volta? Sempre acreditei que devesse esperar o momento certo para dizer a todos aqueles que cruzaram o meu caminho o quanto eles são importantes. Considerando que minhas histórias sempre começaram e terminaram em um cemitério, nada mais apropriado do que este momento, de morte. Momento em que encerro este luto simbólico pelo enterro dos erros, das culpas, dos medos, dos arrependimentos, para que, diante de nós, serenamente, a alma-palavra possa ganhar forma e estender esta ponte contínua de afetos presentes. Elas nada pedem, exceto que eu atravesse. Meu coração bate como um par de castanholas por me postar diante de vocês, assim, tão ritmicamente. Foi um convite irrecusável à metamorfose, à transformação profunda, à coragem de jogar fora um passado velho, para que um novo presente entre.
Quando consegui me convencer de que não poderia mais parar de escrever, voltei para a escrivaninhaAs velhas canetas que abandonei sobre a bancada da mesa pareciam sorrir, como numa convenção coletiva de cumplicidade maldita.
Mesmo tendo contraído a doença das palavras,  não tive dúvidas de que viver a vida ainda é melhor que imaginá-la. Mas uma coisa é certa. Não se deve deixar histórias pela metade, sobretudo aquelas que valem a pena ser contadas. O palco da existência é vasto demais para deixarmos de acreditar que amanhã não haja outro cenário, outros personagens, outros enredos, outros aplausos. Em todo caso, para toda boa trama é necessário um intervalo. 
Fui andando até o quarto e sentei-me em cima de um tapete acolchoado. O ar cheirava a sândalo. A pressão sobre os pulmões tinha se evaporado. Ajeitei as costas numa posição de monja tibetana, cruzei as pernas, respirei, expirei e inspirei.
LAAAAAAMMM
VAAAAAAMMM
RAAAAAAMMM
YAAAAAAMMM
HAAAAAAMMM
OOOOOOOMMM
E-E-E-EEEEEEMMM – remixei.
É como um ritual de purificação. Não se chega ao cosmo sem passar pelo caos. Tenho consciência Krishna. A todo o tempo morro e renasço. Em um espírito mais sábio? Não. Em um espírito mais sóbrio, eu acho.


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